sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Meu último aniversário.

"22 de novembro – 04:17am – Esse é o meu último aniversário, e eu só queria dizer ao mundo que estou o deixando sem quaisquer arrependimentos. Senti-me reprimida por toda a minha vida. Esmagada pelos meus próprios anseios, mas a vida juntamente a morte apoderou-se de zelar e aflorar meus mais lindos devaneios, permitindo-me contemplar pacificamente o azul do céu claro ou estrelado mesmo com toda a dor existente aqui dentro. Nunca me houveram dúvidas sobre o resto de nada que eu me tornaria e do quão putrefata eu estaria nessa minha chegada aos vinte e um anos de vida. Sem surpresas. Como aniversariante, desejo que a terra me acolha, que minhas entranhas sejam consumadas pela terra, comida pelos vermes e acolhida pelos ventos do rio Colorado. Tanto faz. Só desejo descansar junto a ele e seu imenso caos. Acompanhá-lo de mãos dadas num belo passeio pelo nosso inferno afora. É tudo o que desejo no momento.”

“05:51 - Põe-se à mesa minha hora de dizer adeus. Como fartamente o prato cheio de rancor esquecido por alguém cujo inescrupuloso comportamento foi o de deixar-me enquanto nem eu estava pronta para o feito. Talvez eu tenha divagado por demais comigo mesma, perdida em meio ao aglomerado de sentimentos que tanto me corrompia, lendo Edgar Allan Poe, Sylvia Plath, Virginia Woolf e Fernando Pessoa pelas praças de Foz do Iguaçu e região, sentada no banco da praça do Mitre ou na Praça da Paz, com meus romancistas deprimidos na minha bolsa, ignorando o mundo e os humanos lixos que nele eu vivo cercada (não nego que tornei-me um deles também), sempre desrespeitando a vida que a mim foi concedida pelo universo, sem sequer agradecer pelo emaranhado de poeira cósmica existente em mim. Não me envergonho da minha retirada prematura e assim justamente me martirizo pela ida não ocorrida antes. Tantas falhas acometidas e não dissolvidas. Oh céus! Poderia eu deixar agora para trás a vontade de deleitar-me numa cama macia cercada por peônias de todas as cores, as minhas favoritas. A morte, tão sedutora, de quebra me atinge de vez em sempre, desde os meus treze anos, ordenando que eu fique. Sequer a mesma possuiu a fineza de me acolher antes. Encolhida, eu, pelas próprias palavras e experiências vivenciadas diante de situações jamais perdoadas, jamais compreendidas. Talvez eu tenha sido boa demais para o mundo, talvez eu tenha passado tempo demais esperando por um chamado dos céus enquanto me vangloriava por viver no inferno ardente do qual me encontrava acostumada, talvez eu tenha esperado demais das pessoas que partiram e jamais voltaram, mesmo que eu tenha sido a pessoa que inutilmente tenha as afastado por não saber lidar com as feridas que eu mesma causava, bem provavelmente eu tenha sempre esperado algo em troca de algo e o que me foi ofertado e por mim acolhido tenha sido o fruto de comportamentos esperançosos para que eu finalmente pudesse cansar da ideia de descansar abaixo da terra. O que não aconteceu. Eu não desisti e me cerquei por pessoas que, assim como eu, embora com tão pouco tempo de vida, perceptivelmente a vida ali já não mais existia. Reforçando-se, assim, o pensamento de que a morte é extraordinária demais para não ser buscada.”

06:25 - Arranco um papel da agenda, guardo-a na bolsa, pego o gravador e minha garrafa d’agua, e sento-me em uma rocha.

- Eu não deveria ter voltado – já consigo dizer em voz alta, mesmo com toda a certeza de que meu lugar é aqui, enquanto acompanho com o olhar os pássaros que voavam pelas margens do rio. Reconheço o poder da linguagem que desperta em minha pessoa o ardor da glória da verdade, tornando-a mais verídica do que quando contemplada apenas por pensamento.

- Mas será que é mesmo? Será que não estamos todos à beira do precipício esperando por um convite nada convidativo informando-nos sobre a retirada dessa viagem tão cara paga com carne, sangue e muitas péssimas experiências que nos marcaram profundamente? - Retrucou Leon naquele mesmíssimo diálogo estranho, confuso e rotineiro do qual apenas nós dois poderíamos compreender.

- Pois não me restam dúvidas do pedido da partida que sempre muito bem vinda nunca me foi ouvida – rebato de prontidão – Até agora.

“A única verdade é permanecer e aceitar o mistério da carne cujos braços tanto doem pela espera de um alguém que se foi e escolheu jamais voltar – penso enquanto pesa-me a vontade de gritar, então desabafo baixinho apenas para o gravador 'por que ainda não consigo aceitar o fato de tê-lo afastado por tanto tempo a ponto de senti-lo distante, mesmo com a sua volta inesperada há mais de quatro meses?Parece-me desconcertante não acreditar que é ele mesmo, ao meu lado, em carne e osso.”

- Talvez eu não devesse ter voltado – repito em voz alta.

- Talvez devêssemos ter pulado da Golden Gate durante nossa passagem por São Francisco – diz ele, levantando-se bruscamente, alcançando no bolso direito de sua calça bege nylon seu último cigarro da terceira carteira de Dunhill Carlton Blend que fumara em menos de seis horas.

- Viraríamos notícia, exposição não é comigo, minha preferência é sempre passar despercebida o máximo possível - eu disse.

Peço encarecidamente para que não se aproxime mais da borda. Fujo do assunto anterior comentando sobre o clima que tanto me agrada nessa época do ano. É a terceira vez que venho ao Arizona, “mas não sei se me seria satisfatório morar aqui” – finalizo, deixando as interpretações por conta dele.
Entre suspiros e minutos de silêncio, apenas contemplando o Parque Nacional do Grand Canyon, me deparo com Leon sentando-se de súbito próximo a borda de uma rocha com os pés suspensos no ar e os olhos marejados junto a um leve sorriso sabotador no rosto.

- Deveríamos morar aqui – Diz ele, compreendendo e discordando do meu comentário.

- Você quer dizer... aqui? Agora? – Pergunto.

- Sim, Louise, gostaria que fosse. Aqui, agora. Familiarizei-me com o lugar desde minha segunda passagem por aqui, já é a quinta. É aqui onde nossos corpos deveriam permanecer.

- O céu aturdido em estrelas neste exato momento... não sei se pretendo devolver a elas um pedaço do que já foram.

Após uma troca amigável de comentários sinistros e olhares confortantes me abstenho da ideia de não permanecer.
Eu poderia ter lutado até o final, mas a verdade é que eu não quero mais brincar de vencer. Eu to aqui pra ficar. E aqui ficarei, então, para sempre, com ele que agora encontrara seu momento de paz. Concordo mesmo sem dizer nada, até porque já me encontro no mesmo ritmo há algum tempo, desde nossa passagem pela Califórnia.
Levanto, limpo minhas calças azuis nylon e contemplo as muralhas colossais perfeitamente esculpidas pela natureza que eu tanto admirava.
Recordo-me da passagem do Diário de Anne Frank a qual dizia:
 “O melhor remédio para os amedrontados, solitários ou infelizes é sair, ir a um local em que possam ficar a sós, com o céu, a natureza e Deus (...) Enquanto isso existir – e deve existir para sempre – sei que haverá consolo  para toda tristeza, em qualquer circunstância. Acredito firmemente que a natureza pode trazer conforto a todos que sofrem.
Cômico um dia eu ter concordado com essa afirmação. Hoje não mais. Sequer a grandiosa beleza das cores pôde manter em mim o desejo de permanecer numa forçosa falsa aventura de sentir-me pertencente a este planeta.

"07:02
Leon veio até a minha direção e me deu o abraço mais caloroso que eu havia recebido em muito tempo. Agradeço a ele mais uma vez por ter voltado á minha vida após tantas tentativas de excluí-lo para que a derrota que em mim crescia se firmasse com maior comodidade. Agradeço-o por ter se permitido voltar e buscar pela amizade que eu jogara fora enquanto apenas pensava na morte que tomava conta do meu corpo.
Houve um momento entre beijos sutis e abraços onde eu pude jurar que mudaria de ideia, mas não aconteceu. Nós acontecemos e o céu se iluminou numa passagem da vida para morte que naquele momento emergia de nós.
Sorrimos abraçados com olhares penetrados no infinito. Ele com seus 1,80m e eu com meus 1,57m e a cabeça apoiada em seu peitoral, apreciamos vagarosamente o horizonte marcante do céu que se acendia no sudoeste do Arizona às 07 e pouco da manhã.
Pude sentir algumas lágrimas escorrendo e a vitória crescente no meu peito. Um formigamento que vinha da alma e percorria meu corpo dos pés à cabeça. Eu havia vencido a vida e já estava preparada para a morte há tempos, mas nada do que havia imaginado durante todos esses sofridos anos se parecia com a contemplação que agora se revelava.

Sem receios, de mãos dadas juntaremo-nos ao infinito de cores que banha o céu logo no início desta manhã."

Leon e Louise trocaram sorrisos, deram dois passos para trás e pegaram impulso minutos antes de dois guias locais, desconfiados da situação que avistavam de longe, chegarem onde o casal estava.
Pularam.
Para alguns, a morte aparenta ser mais acolhedora em sua essência.
E foi, para eles. Mesmo que isso fuja da minha compreensão.
Este de fato foi o último aniversário de Louise. Através das cartas e gravações de áudio percebo que talvez isso tenha sido o que ela mais queria.
Questiono-me sobre a dor sentida e prefiro acreditar que a morte tenha sido mais confortante do que sofrida, para ambos.

A vida não é para todos – pensei – A vida de fato não é para todos.

0 comentários:

Postar um comentário