eu me deixaria se eu pudesse
eu juro, se eu conseguisse, abriria um zíper onde meus braços não alcançam e abraços nunca chegam
removeria toda a carcaça de dentro e tentaria um provável fracasso ao me permitir ser quem eu deveria enquanto a melancolia não marcava tamanha presença
abandonaria esse corpo pequeno demais para os sonhos que desenho imaginavelmente alcançar
relutente, peço perdões à minha pessoa por não conseguir estar sempre presente, consciente em demasia sobre os terrores que tanto me assombram na morte que se faz minha vida
eu me abandonaria se pudesse
abriria ao meio esse corpo que persiste anular a felicidade que não chega
e por que caralhos não chega?
eu procuraria aumentar essa pequena fresta de luz enquanto a escuridão se ausenta
tão pequena que talvez eu nunca a encontre, porém reconheço, existe em algum lugar
escondida, emaranhada na imensidão de características tão frutíferas que adentrei
e nunca concluí
eu sei, inóspita em demasia, na maresia de lágrimas próprias que emergi há tanto, e nunca voltei
confesso que nunca soube como remar de volta, jamais houvera uma ocasião permanente que me permitisse aprender a nadar em busca do que desde criança ousei sonhar
água fresca para repousar
situação corriqueira que tanto me prende a um corpo que tanto insiste em pegar fogo
uma mente que tanto clama para que o silêncio chegue num futuro não muito longe
insinuo delírios distantes
por que tanto resisto às cores que as vezes tentam tocar o meu preto no branco?
meu cinza, monótono, morno
me envolvo em braços frouxos que se negam a me segurar, antes de sequer sentir resquícios do cheiro de enxofre que tanto me mantém ocupada em resistir à beleza da natureza lá fora
à tristeza que penumbra minhas entranhas, belisca e arranha minha pele fina e já quase escassa de brilho em tão pouco tempo de vida: uma lástima, querida, nunca fostes bem vinda
nem mesmo os sete demônios que me habitavam na morte que se fizera minha vida, arriscaram ficar
se eu pudesse, abriria um zíper da cintura à nuca e mandaria todos aos infernos que por tanto tempo me fizeram vivenciar
gostaria de voltar ao passado e gritar a todos sobre os segredos que os homens ousaram guardar
aliciaram sim, as partes de mim
toques em partes que uma pessoa tão nova não deveria sentir tocar
se eu pudesse abrir um buraco no peito e remover toda a sujeira que adultos guardaram aqui por tanto tempo, até que o tempo se tornasse apenas um buraco negro em lento movimento, me puxando cada vez mais para dentro, enquanto me torno essa adulta frustrada, perdida, clamando para ser compreendida e respeitada
incógnita. inóspita de mim, uma casa em chamas, de janela única, impossível de fazer entrada
se eu pudesse definir os horrores que me assombram desde os primórdios da vida, desenvolveria uma equação infinita, quase impossível de se resolver
e eu teria a mim, a torcer para que encontrassem um meio de me fazer sofrer menos
tornar o caos menor
proporcionar o sentir-me maior do que de fato sou ou algum dia serei
meu estado em constante alerta me permite nesse instante perceber o quão sofríveis são os momentos claustrofóbicos que instigam o sofrer
e eu tanto busquei a morte como se fosse minha única saída, melhor amiga, o único ar possível de se respirar
eu nunca quis me ausentar do viver
eu só preciso subir até o raso, onde as ondas repousam e a maré é tranquila na maior parte do tempo
no entanto, como sempre insegura a hesitar, é impossível não questionar-me: como remover das vistas perceptivas esse manto melancólico que me cobre em vida?
se eu pudesse me abandonar, nunca mais voltaria.
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